Tristes crônicas de um país sem graça
por Fábio Reynol
1997
Era uma noite quente de abril quando cinco estudantes bem alimentados e educados sob os auspícios da fina flor da sociedade brasiliense se cansaram de seus videogames e resolveram sair às ruas à caça de brinquedos mais emocionantes. Os mimos dados por papai e mamãe não mais satisfaziam os impulsos desses meninos sapecas e cheios de energia.
Um deles ofereceu o carro – outro brinquedinho patrocinado por papai – e os demais embarcaram. Não demorou para a capital federal lhes apresentar uma diversão digna de gente de alta estirpe. Avistaram uma construção pública que lhes era completamente estranha. Sabiam que chamavam aquilo de "ponto de ônibus", para eles algo absolutamente inútil. Como podem gastar dinheiro público com coisas assim? Pensavam. Aquilo só servia para oferecer abrigo a quem se utilizava do transporte público, outro conceito que eles não conheciam nem de perto. Ademais, nunca se imaginaram colocando seus abonados buzanfãs tratados a talquinho italiano num banco de concreto tão nojento.
Naquela noite estrelada, eles descobriram que o dito equipamento público tinha outra função que era muito mais nociva à sociedade dos meninos educados. O ponto também servia de abrigo a indigentes que, como o próprio nome diz, são menos que gente. Essa espécie se enquadra numa categoria entre os cachorros e os ratos, uma vez que muitos cães encontram abrigos quentes e sociedades que os protegem e os ratos se escondem nos esgotos para não se exporem em pontos de ônibus. Imagine a indignação experimentada pelos rapazes ao encontrar naquela parada de ônibus um desses indivíduos que emporcalhavam a cidade com a própria existência.
Numa atitude patriótica e de cunho sócio-saneador, o grupo que estudou nas mais caras escolas da cidade decidiu cauterizar aquele cancro social. Imbuídos desse nobre dever cívico, espalharam combustível o mais uniformemente possível sobre aquela subpessoa que ousara nascer num mundo muito mais educado do que ela. Riscaram um fósforo e observaram com atenção (como convém aos que conhecem o método científico) como se comportava o fogo ao queimar um material tão vil e de tão pouca serventia. Satisfeitos, voltaram para casa com a sensação do dever cumprido e admirados com a própria capacidade de unir prazeres e obrigações. Dormiram tranqüilos.
No dia seguinte, o mundo desabou sobre suas iluminadas e endinheiradas cabecinhas. Só metade de sua contribuição à sociedade havia se completado. O alvo tinha sido eliminado, é certo, só que ele não era um indigente, mas um índio o que o colocava numa categoria ligeiramente superior aos moradores de rua, ainda que não gozasse do status de "gente". Claro que além do amparo dos poderosos papais que vieram em seu socorro, havia também a eloqüente justificativa que pesou em seu favor: "Foi mal! Pensamos que fosse um mendigo!" A "Justiça", que por cinismo ou deboche gosta de usar esse nome no Brasil, nem considerou homicídio, preferiu classificar a estripulia como "agressão física". Afinal, o que matou o índio foram as queimaduras não o ato dos marotos.
Quatro passaram pouco tempo em pseudo-prisões de onde saíam para tomar cerveja e fazer faculdade (afinal eram educados!). Desde 2004, estão sob liberdade condicional, ou seja, condicionada a que não cometam mais diabruras nem gestos de crianças mal-educadas. O quinto nem foi incomodado porque era menor (ops!) criança!
2007
Um deles ofereceu o carro – outro brinquedinho patrocinado por papai – e os demais embarcaram. Não demorou para a capital federal lhes apresentar uma diversão digna de gente de alta estirpe. Avistaram uma construção pública que lhes era completamente estranha. Sabiam que chamavam aquilo de "ponto de ônibus", para eles algo absolutamente inútil. Como podem gastar dinheiro público com coisas assim? Pensavam. Aquilo só servia para oferecer abrigo a quem se utilizava do transporte público, outro conceito que eles não conheciam nem de perto. Ademais, nunca se imaginaram colocando seus abonados buzanfãs tratados a talquinho italiano num banco de concreto tão nojento.
Naquela noite estrelada, eles descobriram que o dito equipamento público tinha outra função que era muito mais nociva à sociedade dos meninos educados. O ponto também servia de abrigo a indigentes que, como o próprio nome diz, são menos que gente. Essa espécie se enquadra numa categoria entre os cachorros e os ratos, uma vez que muitos cães encontram abrigos quentes e sociedades que os protegem e os ratos se escondem nos esgotos para não se exporem em pontos de ônibus. Imagine a indignação experimentada pelos rapazes ao encontrar naquela parada de ônibus um desses indivíduos que emporcalhavam a cidade com a própria existência.
Numa atitude patriótica e de cunho sócio-saneador, o grupo que estudou nas mais caras escolas da cidade decidiu cauterizar aquele cancro social. Imbuídos desse nobre dever cívico, espalharam combustível o mais uniformemente possível sobre aquela subpessoa que ousara nascer num mundo muito mais educado do que ela. Riscaram um fósforo e observaram com atenção (como convém aos que conhecem o método científico) como se comportava o fogo ao queimar um material tão vil e de tão pouca serventia. Satisfeitos, voltaram para casa com a sensação do dever cumprido e admirados com a própria capacidade de unir prazeres e obrigações. Dormiram tranqüilos.
No dia seguinte, o mundo desabou sobre suas iluminadas e endinheiradas cabecinhas. Só metade de sua contribuição à sociedade havia se completado. O alvo tinha sido eliminado, é certo, só que ele não era um indigente, mas um índio o que o colocava numa categoria ligeiramente superior aos moradores de rua, ainda que não gozasse do status de "gente". Claro que além do amparo dos poderosos papais que vieram em seu socorro, havia também a eloqüente justificativa que pesou em seu favor: "Foi mal! Pensamos que fosse um mendigo!" A "Justiça", que por cinismo ou deboche gosta de usar esse nome no Brasil, nem considerou homicídio, preferiu classificar a estripulia como "agressão física". Afinal, o que matou o índio foram as queimaduras não o ato dos marotos.
Quatro passaram pouco tempo em pseudo-prisões de onde saíam para tomar cerveja e fazer faculdade (afinal eram educados!). Desde 2004, estão sob liberdade condicional, ou seja, condicionada a que não cometam mais diabruras nem gestos de crianças mal-educadas. O quinto nem foi incomodado porque era menor (ops!) criança!
2007
Cinco capetinhas da crème de la crème carioca, satisfeitos por viverem num país em que há "Justiça" (eles nunca notaram a sutil piadinha por trás dessa palavra) também saíram à noite a brincar e a gastar a mesada que os papais lhes davam. Eles se esbaldavam numa fresca madrugada de junho na Cidade Maravilhosa, quando se depararam com aquela aberração que o governo insistia em manter nas vias públicas: o ponto de ônibus. Sob o abrigo, identificaram outra subespécie que não deveria jamais conviver com seres humanos: a das prostitutas. Cheios de altivez moral, não pensaram duas vezes em sair de seu carro e limpar o quintal de casa dando uma boa surra nessas criaturas que tinham a petulância de se intitular "mulheres" e ainda mais "da vida".
Pecaram pela desobediência. Lembra quando a mamãe falava para não deixar os brinquedinhos largados por aí? Pois é. Deixaram o carrinho de ferro solto na rua e enquanto brincavam de defender o bom nome da high society carioca, um taxista anotou a placa do dengo que papai havia dado. Por absoluto azar, uma das mulheres espancadas resolveu prestar queixa. Para o espanto da molecada, aquela pessoa (agora podemos chamá-la assim) tinha um status mais elevado em seu ranking sócio-biológico das espécies. Era uma empregada doméstica! Daquelas do mesmo tipo que eles tinham em casa e que lavavam as suas cuequinhas. "Mil perdões! Foi mal! Pensamos que fosse uma prostituta!"
2017
Pecaram pela desobediência. Lembra quando a mamãe falava para não deixar os brinquedinhos largados por aí? Pois é. Deixaram o carrinho de ferro solto na rua e enquanto brincavam de defender o bom nome da high society carioca, um taxista anotou a placa do dengo que papai havia dado. Por absoluto azar, uma das mulheres espancadas resolveu prestar queixa. Para o espanto da molecada, aquela pessoa (agora podemos chamá-la assim) tinha um status mais elevado em seu ranking sócio-biológico das espécies. Era uma empregada doméstica! Daquelas do mesmo tipo que eles tinham em casa e que lavavam as suas cuequinhas. "Mil perdões! Foi mal! Pensamos que fosse uma prostituta!"
2017
A madrugada chegou fria e úmida numa metrópole brasileira. O governo já eliminara o mal que um dia havia gerado tanta revolta e indignação popular: o ponto de ônibus. Agora não existia mais abrigo para as criaturas economicamente rastejantes que emporcalhavam o cenário urbano. Cinco meninas bem maquiadas da classe média-chique da cidade, felizes por viverem num país em que funcionava a Justiça (naquela época o termo já havia adquirido outro sentido o que eliminou de vez a jocosidade e as aspas) saíram para a balada a se divertir e a exibir as novas Pradas e Louis Vuittons combinantes com os seus novos tons capilares de Loreal Paris. Uma delas, em meio ao barulho da boate, não conseguia falar com a amiga pelo celular, por isso foi à calçada tentar escutar melhor o seu MotoBlackBeltBerryExibition de oitava geração.
Por pura ironia do acaso, a moça parou sobre aquilo que um dia havia sido um ponto de ônibus. Por um azar só explicável pela conjunção astral daquela noite, passavam naquele exato momento cinco garotos recém-foragidos do Gueto Fluminense (ex-Baixada). É bom explicar que o governo, numa sábia decisão em prol do saneamento público, houve por bem murar todas as favelas e áreas periféricas consideradas de alto risco (leia-se: baixa renda). Só saíam delas os oficialmente credenciados, o que não era o caso dos garotos em questão. Pensando que se tratava de um brinco caro, os rapazes arrancaram num puxão o MotoBlackBeltBerryExibition da moça. Na verdade, o microaparelho era muito mais caro do que a maioria dos brincos caros, pois era cravejado de pedras preciosas e ainda fazia projeções holográficas com progressive scan. Todavia, os rapazes não estavam nem aí para o progressive scan da menina e também arrancaram a Prada Snobation de US$3.800,00, uma das poucas da cor fúcsia vivant que a garota possuía. Não contentes com a feira já garantida, os garotos sentiram um ímpeto não se sabe de onde de espancar a moça. Deixaram-na semimorta sobre aquele ex-ponto de ônibus.
Foram todos presos. Desta vez, não haveria perdão. Iriam pegar 15 anos de cana cada um numa penitenciária com grades, carcereiros e superlotação. Não eram meros meninos sapecas, mas marginais formados pela escola do crime (já que a escola pública não lhes abrira as portas). Os pobres ainda tentaram, em vão, lançar mão de um antigo atenuante: "Desculpa aí! Foi mal! Pensamos que era uma socialaiti!"
Por pura ironia do acaso, a moça parou sobre aquilo que um dia havia sido um ponto de ônibus. Por um azar só explicável pela conjunção astral daquela noite, passavam naquele exato momento cinco garotos recém-foragidos do Gueto Fluminense (ex-Baixada). É bom explicar que o governo, numa sábia decisão em prol do saneamento público, houve por bem murar todas as favelas e áreas periféricas consideradas de alto risco (leia-se: baixa renda). Só saíam delas os oficialmente credenciados, o que não era o caso dos garotos em questão. Pensando que se tratava de um brinco caro, os rapazes arrancaram num puxão o MotoBlackBeltBerryExibition da moça. Na verdade, o microaparelho era muito mais caro do que a maioria dos brincos caros, pois era cravejado de pedras preciosas e ainda fazia projeções holográficas com progressive scan. Todavia, os rapazes não estavam nem aí para o progressive scan da menina e também arrancaram a Prada Snobation de US$3.800,00, uma das poucas da cor fúcsia vivant que a garota possuía. Não contentes com a feira já garantida, os garotos sentiram um ímpeto não se sabe de onde de espancar a moça. Deixaram-na semimorta sobre aquele ex-ponto de ônibus.
Foram todos presos. Desta vez, não haveria perdão. Iriam pegar 15 anos de cana cada um numa penitenciária com grades, carcereiros e superlotação. Não eram meros meninos sapecas, mas marginais formados pela escola do crime (já que a escola pública não lhes abrira as portas). Os pobres ainda tentaram, em vão, lançar mão de um antigo atenuante: "Desculpa aí! Foi mal! Pensamos que era uma socialaiti!"
Fábio Reynol é jornalista.